Medo. Receio, temor, paúra, desespero, pavor ou cagaço puro e simples. Tudo isso e mais um pouco gelou meu coração quando um raio de dor atingiu bem o meio de minha bunda esquerda, a região do glúteo médio, onde se encontram e de onde saem músculos por demais conhecidos dos corredores: o maldito piriforme, o lancinante ísquio-tibial, o recalcitrante bíceps femoral.
A dor veio quando eu já seguia, alegre e satisfeito, quase na metade da meia maratona de Montevidéu, primeira prova longa que fazia desde que abandonara, por dor e lesão, uma maratona no Peru, já lá se vão mais de 12 meses.
Será que ela viria me atucanar, derrubar, destruir? A dor naquela região pode ser causada por contração muscular na região da lombar, ser prenúncio de incômodo no posterior da coxa ou aviso de complicações outras. Enfim, como todos sabemos, o glúteo está no coração da correia de transmissão muscular que movimenta nosso corpo.
E devo dizer que meu corpo estava, até então, se movimentando muito bem. A meia maratona de Montevidéu é uma prova bacana, gostosa de correr, com pequenos problemas de organização, mas muito simpática.
A simpatia começou pela inscrição, que foi só apalavrada por e-mail, já que a forma de pagamento proposta acabava me obrigando a arcar com taxas indesejadas. Quando cheguei, demoraram um pouco para achar a confirmação do registro e acabaram por não encontrá-la mesmo. "No hay problema", disse o diretor da prova, sentando-se ao computador para acertar ele mesmo a inscrição, que paguei na hora sem burocracias outras. Pequei a camiseta vermelha da prova e segui então para meu hotel, próximo ao cento histórico de Montevidéu.
Era a primeira vez que visitava a capital do Uruguai, e a cidade me parece bela, ainda que um tanto modorrenta. Tem um ar de elegância dos anos 50, uma altivez, fidalguia. As ruas são amplas, há muitas árvores, e prédios antigos convivem com arquitetura modernosa. Pouca gente na rua e baixíssimo movimento de veículos, mesmo considerando que estava no final da tarde de sábado.
Na manhã seguinte, porém, o movimento era grande na área da largada da prova, no parque Rodó, uma das generosas áreas verdes da cidade. Falta menos de uma hora para a largada, o pórtico não estava montado, chips ainda eram distribuídos e voluntários cortavam bolos que mais tarde seriam servidos aos corredores.
Na hora marcada para a saída, não aconteceu nada, mas, minutos depois, começou o aquecimento, um longo processo de pulos, saltos e brincadeiras orientado pelo próprio diretor da prova. Estávamos indóceis no partidor, mas de maneira geral o bom humor parecia predominar, apesar do atraso. Enfim, com mais de 15 minutos passados das dez, saíram os cadeirantes e, em seguida, a massa vestida de vermelho e cinza –estes fariam uma prova de 7 km.
O desenho do percurso da prova é bem simples. Grosso modo, seguimos para a frente cinco quilômetros e um pouquinho, voltamos uns dez e retornamos mais uns cinco em direção à largada, que é também o ponto final. Praticamente todo o tempo corremos pelas ramblas –que, no mapa, trocam de nome, mas são uma mesma enorme e plana avenida que margeia o rio da Prata (confira o percurso AQUI).
Aquela água toda que nos olha acalma o espírito, mas também pode soar ameaçadora; como muitos outros rios, o da Prata tem as águas em tons de marrom, e devem ser geladas. Não dá para deixar de ver o rio, de permitir que ele faça parte da própria corrida, ainda que eu procure ficar sempre atento ao asfalto, para fugir de eventuais e traiçoeiros buracos.
O percurso, porém, é livre de armadilhas, e eu trato de seguir tranquilo. Equilibrar músculos de costas, quadril, abdome, pernas, fazer com que tudo funcione em sintonia sem que ninguém tente exagerar, essa é a minha missão na corrida.
Sei que estou na rabeira do pelotão e busco acompanhar a turma de camisetas cinzas, que vai fazer a prova curta. Eles nos abandonam logo depois do terceiro quilômetro, e então a coisa fica feia: há menos corredores, fico mais solitário, o vermelho mais próximo está lááá na frente, parece inalcançável.
É um momento difícil. Não há competidores por perto, rivais que apresentem desafio; o corredor precisa buscar dentro de si forcas para seguir, acertar seu relógio vital, que pulse sem explodir, mas também sem afrouxar. A corrida é, mais do que nunca, nas frias margens do Prata, um esporte solitário, ainda que feito em grupo.
Depois de pouco mais de cinco quilômetros, chego à primeira volta do percurso sem ter afrouxado o passo. Estou tão satisfeito comigo mesmo que nem me importo de beber água em galão. É preciso caminhar para não perder o equilíbrio, mas tudo me diverte.
Até ali, mal notara a cidade em volta. Voltando, me permiti abrir os olhos para outras coisas que não o chão e meu ritmo; notei uma placa que anunciava como atração turística um tal de templo inglês. Busquei a construção, que imaginei histórica, e logo vi um imenso prédio branco, no meio de uma colina, e fiquei satisfeito com minha descoberta.
Ledo engano: mais tarde fiquei sabendo que o tal templo, réplica de construção do século 19, estava mesmo à minha frente, no centro de um gramado verdejante, e era bem menos imponente do que eu imaginara.
Também não notei outros monumentos históricos, como o Cubo Del Sur, ruínas da muralha que há séculos protegeu a cidade. Ainda resta por lá um canhão multicentenário, mas nada que chame a atenção de um sujeito que passa correndo pelo asfalto.
O que me chamou a atenção foi a música que vinha de um posto de água, logo à frente. Lá também estava a Eleonora, a me incentivar. Fiquei tão satisfeito que até ensaiei uma dancinha desengonçada ao som dos tambores.
Pois foi logo depois disso que a pontada de dor veio, assustadora, apavorante. Foi só um átimo, um raio, um repuxão no músculo, o suficiente para me trazer de volta à dura realidade de um convalescente, que precisa fazer tudo com o máximo cuidado para que músculos, ossos e cartilagens não desandem em dolorido desastre.
A causa do repuxão fora uma passada mais aventureira, imaginei eu, já me recriminando por não ter seguido, até ali, o plano que traçara com meu treinador.
O projeto era fazer da meia maratona uma reprodução de meus treinos longos, em que combino corrida e caminhada para cumprir distâncias que passem mesmo dos 20 km. No papel, correria blocos de cerca de 5 km, com pausas caminhadas de aproximadamente 500 metros. Mas o dia estava fresco, o asfalto plano, a cidade convidativa, o aplauso da Eleonora era um afago, e fui seguindo correndo, esquecendo das pausas e da vida, pensando que estava em meus bons tempos.
CONTINUA...
Escrito por Rodolfo Lucena às 01h22
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